1.
chegaste com as folhas de outubro
adormecida nas mesmas cores
ficaste como quem espera
a vinda de maio
sombram-te fantasias sonhos
adormecem [como tu] as cores
que outubro tinha nas folhas
quando chegaste
2.
em azul
roda o pensamento da gaivinha
olha a rocha
tombada na areia
a água
quebra no verso
sonhas-te viajante em mar
desconhecido
primeira ouvinte do roçagar
da seda que te incha?
um vento de mármore
na constelação da barca
suprime as palavras
borbulha silêncios
3.
a praia é o album de recordações
por onde vemos
impressos
os primeiros passos das mãos
4.
o que deixámos
não jaz
apenas muda de olhar
talvez haja outra frequência
nas ondas
outro estalar nos rios
nas velas e nas asas
a sombra se mova mais por dentro
o que deixámos
é o de sempre
mesmo quando o olhar apaga
a silhueta que fica
5.
é sobre o corpo que o telhado cresce
afagam-me a língua
folhas por escrever
é teu o segredo da palavra
e o eco
do verbo
pousado no colo
apenas o espelho não ouve
a face esperada
6.
penetrando a linha
os pés pousaram na areia
com solas de agosto
esperámos junto ao mar
a chegada do tempo
aves em migração
voámos outubro inteiro
7.
foi depois: a casa abriu
janelas e braços
à neve de janeiro
[que nos veio cumprimentar esse ano]
foi quando abrimos o álbum
para ver se as peugadas eram iguais
às que a areia guardou
enrolado no outono
8.
arrumámos a poesia
no lugar que convinha aos versos
a sala encheu-se de névoa
eram letras que bailavam
um lento significado de espera
pelos rios que ainda corriam
caudalosos
protectores
delindo um eclipse de tempo
sem retorno
9.
voltámos à praia
ao primeiro chamar
da andorinha-do-mar
deixámos os beirais
a descoberto
e a incerteza dos dedos pousada
no lugar da voz
por mim podia dizer que
amo o silêncio
com que me chamas
a escrever na areia
10.
para ti podia recortar
todas as manhãs
existentes nas mãos
pendurar a imagem
[espelho que fosse]
no desejo de pólen
que te acolchoa o infantário
traçar
na gruta do domicílio
o nome
11.
a ti ave pousada na cepa entrego
a colheita de outono
toma das uvas o mel e o delírio
que sobre as palavras
estará a ser o que se move
tua é a guarda da voz e do silêncio
que um espasmo em força pode
desequilibrar a qualquer instante
mas será sempre nossa a viagem
ao interior daquela
luz – rasgadas as paredes da sombra –
que pendura no espelho que convém
a imagem
12.
no ciclo da lua
sobem e descem marés
às areias
distante
o outono observa o rito
das árvores
tão antigo como abril
EPÍLOGO
pouso nos dedos a idade de te ter
junto ao acordar
sonho maio a abrir uma flor
em silêncio espero da mão a face
quando o outono colher
a idade de me ter junto ao sono
©FERNANDES Júlio A. B. – EPILEPSIA DAS HORAS - II — 2010.