terça-feira, 5 de maio de 2009


















Campo de Letras




Tenho sono.

Acontece

às vezes

ter sono.


O mesmo sono das palavras sossegadas

na verticalidade da prateleira.



Se soubesses o quanto me incomoda o piscar de luzes, os

berros da noite na sala de espera ou o marear do búzio

encostado ao ouvido. Ainda que fosse jardim de palavras

plantadas tardiamente a florir em Março?

Talvez deixe os versos beberem um pouco do verbo,

apenas para dizer de como me aquecem as brasas depois

do fogo consumir os ramos.

E se florir alguma coroa-de-rei com cor-de-lume entre os

jacintos bronzeados e os cor-de-neve, é porque a terra

ainda consome dias de verão.



Aflige-me este piscar constante

de ambulância em urgência;

este sol estridente

que me não deixa dormir

quanto cia

na verticalidade inversa

dos ecos da prateleira.



A partir duma certa idade, o sono demora. Entre o ir e o

regressar corre o dia da lua. Talvez por ordem de

engano!? Há quem o alongue. Há quem o encurte.

No meu jardim as flores abrem com a luz das estrelas.

É verdade, também há girassóis nos vasos que sobem as

escadas para a cozinha, pelas traseiras.

Envergonhados, voltam costas ao quintal coberto de ervas

daninhas. Mas, por estarem nas costas, sentem-se melhores,

com mais calor e humidade.

Envaidecidos, não olham a porta principal onde os vasos

maiores, com as flores mais exóticas e belas, ornam a voz.



Aquele jacinto — caulescência

sem utilidade no jardim —

atrapalha-me o dia.


Silencioso

tombou na terra

sem abrir flor.


O real invadiu o horizonte dos olhos

quadrifendendo o mundo

em conjuntos não contidos.



Com asas de surpresa, este falar mudo afirma-se no tacto

e, refrescando os olhos, entra na corrente.

Bastará a mente e seus impulsos eléctricos para fazer fluir

o Rio? Pulsará no tempo a água vermelha que escorre

por todos os hemisférios do corpo? No dia em que a luz

entrar no alçapão do sótão, que descobrirá?



A minha escrita etiquetada —

marca contrafeccionada

em comércio de feira?…


Talvez…


Caminho divergente

convergente

aposto à mesma ideia

de sempre.


Apenas

rasgado com outro sabor:

o meu!



Os dias são uma sucessão de surpresas encontradas nos

caminhos onde entramos quase, quase, quase sem querer.

Quase… quase como folhas que vamos colorindo, brincando

com o silêncio, o pó, o rio estendido ao sabor do nosso

refresco, brinca com o veneno que traz na língua. Quase

fogo. Quase… asas queimadas, não levantam voo.



o silêncio

atinge

a irrealidade,


no corredor do nada

realiza

o vazio.


o vazio é nada.

o nada é silêncio.

o silêncio é palavra.

a palavra é surpresa,


é escárnio:


livro deitado

a ressonar o poema.


...


sou inútil quando durmo,

dormindo não realizo

o silêncio da ausência

— inominada —

brancura de página resistente


na vaga

enrolada

nas saias de Abril

a flor azul

enraizada

no Março

a florir

no Maio —

a boca do Outubro

nos olhos:

o silêncio absoluto

a ânsia

presença/ausência

inútil quando durmo.


esse fascínio especial

de eco perene

inevitável

ao ritmo do rumor

insuperável —

musical contradição

na brancura final.


a transparência é:

a mórbida vontade

do espelho,

em apresentar

invertida

a imagem aos olhos

analógicos

da ilusória urdidura.



FERNANDES, Júlio A. B. - Março 2009.

Sem comentários: