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Campo de Letras
Tenho sono.
Acontece
às vezes
ter sono.
O mesmo sono das palavras sossegadas
na verticalidade da prateleira.
Se soubesses o quanto me incomoda o piscar de luzes, os
berros da noite na sala de espera ou o marear do búzio
encostado ao ouvido. Ainda que fosse jardim de palavras
plantadas tardiamente a florir em Março?
Talvez deixe os versos beberem um pouco do verbo,
apenas para dizer de como me aquecem as brasas depois
do fogo consumir os ramos.
E se florir alguma coroa-de-rei com cor-de-lume entre os
jacintos bronzeados e os cor-de-neve, é porque a terra
ainda consome dias de verão.
Aflige-me este piscar constante
de ambulância em urgência;
este sol estridente
que me não deixa dormir
quanto cia
na verticalidade inversa
dos ecos da prateleira.
A partir duma certa idade, o sono demora. Entre o ir e o
regressar corre o dia da lua. Talvez por ordem de
engano!? Há quem o alongue. Há quem o encurte.
No meu jardim as flores abrem com a luz das estrelas.
É verdade, também há girassóis nos vasos que sobem as
escadas para a cozinha, pelas traseiras.
Envergonhados, voltam costas ao quintal coberto de ervas
daninhas. Mas, por estarem nas costas, sentem-se melhores,
com mais calor e humidade.
Envaidecidos, não olham a porta principal onde os vasos
maiores, com as flores mais exóticas e belas, ornam a voz.
Aquele jacinto — caulescência
sem utilidade no jardim —
atrapalha-me o dia.
Silencioso
tombou na terra
sem abrir flor.
O real invadiu o horizonte dos olhos
quadrifendendo o mundo
em conjuntos não contidos.
Com asas de surpresa, este falar mudo afirma-se no tacto
e, refrescando os olhos, entra na corrente.
Bastará a mente e seus impulsos eléctricos para fazer fluir
o Rio? Pulsará no tempo a água vermelha que escorre
por todos os hemisférios do corpo? No dia em que a luz
entrar no alçapão do sótão, que descobrirá?
A minha escrita etiquetada —
marca contrafeccionada
em comércio de feira?…
Talvez…
Caminho divergente
convergente
aposto à mesma ideia
de sempre.
Apenas
rasgado com outro sabor:
o meu!
Os dias são uma sucessão de surpresas encontradas nos
caminhos onde entramos quase, quase, quase sem querer.
Quase… quase como folhas que vamos colorindo, brincando
com o silêncio, o pó, o rio estendido ao sabor do nosso
refresco, brinca com o veneno que traz na língua. Quase
fogo. Quase… asas queimadas, não levantam voo.
o silêncio
atinge
a irrealidade,
no corredor do nada
realiza
o vazio.
o vazio é nada.
o nada é silêncio.
o silêncio é palavra.
a palavra é surpresa,
é escárnio:
livro deitado
a ressonar o poema.
...
sou inútil quando durmo,
dormindo não realizo
o silêncio da ausência
— inominada —
brancura de página resistente
na vaga
enrolada
nas saias de Abril
a flor azul
enraizada
no Março
a florir
no Maio —
a boca do Outubro
nos olhos:
o silêncio absoluto
a ânsia
presença/ausência
inútil quando durmo.
esse fascínio especial
de eco perene
inevitável
ao ritmo do rumor
insuperável —
musical contradição
na brancura final.
a transparência é:
a mórbida vontade
do espelho,
em apresentar
invertida
a imagem aos olhos
analógicos
da ilusória urdidura.
FERNANDES, Júlio A. B. - Março 2009.
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